Gabriela Carelli
O biólogo americano Francis Collins
é um dos cientistas mais notáveis da atualidade. Diretor do Projeto
Genoma, bancado pelo governo americano, foi um dos responsáveis por
um feito espetacular da ciência moderna: o mapeamento do DNA humano,
em 2001. Desde então, tornou-se o cientista que mais rastreou genes
com vistas ao tratamento de doenças em todo o mundo. Collins também
é conhecido por pertencer a uma estirpe rara, a dos cientistas cujo
compromisso com a investigação do mundo natural não impede a
profissão da fé religiosa. Alvo de críticas de seus colegas, cuja
maioria nega a existência de Deus, Collins decidiu reagir. Ele
lançou há pouco nos Estados Unidos o livro The Language of God
(A Linguagem de Deus). Nas 300 páginas da obra, o biólogo conta
como deixou de ser ateu para se tornar cristão aos 27 anos e narra
as dificuldades que enfrentou no meio acadêmico ao revelar sua fé.
"As sociedades precisam tanto da ciência como da religião. Elas
não são incompatíveis, mas complementares", explica o cientista.
A seguir, a entrevista de Collins a VEJA:
Veja - No
livro A Linguagem de Deus, o senhor conta que era um "ateu
insolente" e, depois, se converteu ao cristianismo. O que o fez
mudar suas convicções?
Francis Collins - Houve um
período em minha vida em que era conveniente não acreditar em Deus.
Eu era jovem, e a física, a química e a matemática pareciam ter
todas as respostas para os mistérios da vida. Reduzir tudo a
equações era uma forma de exercer total controle sobre meu mundo.
Percebi que a ciência não substitui a religião quando ingressei na
faculdade de medicina. Vi pessoas sofrendo de males terríveis. Uma
delas, depois de me contar sobre sua fé e como conseguia forças
para lutar contra a doença, perguntou-me em que eu acreditava. Disse
a ela que não acreditava em nada. Pareceu-me uma resposta vaga, uma
frase feita de um cientista ingênuo que se achava capaz de tirar
conclusões sobre um assunto tão profundo e negar a evidência de
que existe algo maior do que equações. Eu tinha 27 anos. Não
passava de um rapaz insolente. Estava negando a possibilidade de
haver algo capaz de explicar questões para as quais nunca
encontramos respostas, mas que movem o mundo e fazem as pessoas
superar desafios.
Veja - Que questões são essas
para as quais não encontramos respostas?
Collins -
Falo de questões filosóficas que transcendem a ciência, que fazem
parte da existência humana. Os cientistas que se dizem ateus têm
uma visão empobrecida sobre perguntas que todos nós, seres humanos,
nos fazemos todos os dias. "O que acontece depois da morte?" ou
"Qual é o motivo de eu estar aqui?". Não é certo negar aos
seres humanos o direito de acreditar que a vida não é um simples
episódio da natureza, explicado cientificamente e sem um sentido
maior. Esse lado filosófico da fé, na minha opinião, é uma das
facetas mais importantes da religião. A busca por Deus sempre esteve
presente na história e foi necessária para o progresso.
Civilizações que tentaram suprimir a fé e justificar a vida
exclusivamente por meio da ciência - como, recentemente, a União
Soviética de Stalin e a China de Mao - falharam. Precisamos da
ciência para entender o mundo e usar esse conhecimento para melhorar
as condições humanas. Mas a ciência deve permanecer em silêncio
nos assuntos espirituais.
Veja
- A maioria dos cientistas argumenta que a crença em Deus é
irracional e incompatível com as descobertas científicas. O zoólogo
Richard Dawkins, com quem o senhor trava um embate filosófico sobre
o tema, diz que a religião é a válvula de escape do homem, o vírus
da mente. Como o senhor responde a isso?
Collins -
Essa perspectiva de Dawkins é cheia de presunção. Eu acredito que
o ateísmo é a mais irracional das escolhas. Os cientistas ateus,
que acreditam apenas na teoria da evolução e negam todo o resto,
sofrem de excesso de confiança. Na visão desses cientistas, hoje
adquirimos tanta sabedoria a respeito da evolução e de como a vida
se formou que simplesmente não precisamos mais de Deus. O que deve
ficar claro é que as sociedades necessitam tanto da religião como
da ciência. Elas não são incompatíveis, mas sim complementares. A
ciência investiga o mundo natural. Deus pertence a outra esfera.
Deus está fora do mundo natural. Usar as ferramentas da ciência
para discutir religião é uma atitude imprópria e equivocada. No
ano passado foram lançados vários livros de cientistas renomados,
como Dawkins, Daniel Dennett e Sam Harris, que atacam a religião sem
nenhum propósito. É uma ofensa àqueles que têm fé e respeitam a
ciência. Em vez de blasfemarem, esses cientistas deveriam trabalhar
para elucidar os mistérios que ainda existem. É o que nos cabe.
Veja - O senhor afirma que as sociedades precisam
da religião, mas como justificar as barbaridades cometidas em nome
de Deus através da história?
Collins - Apesar de
tudo o que já aconteceu, coisas maravilhosas foram feitas em nome da
religião. Pense em Madre Teresa de Calcutá ou em William
Wilberforce, o cristão inglês que passou a vida lutando contra a
escravatura. O problema é que a água pura da fé religiosa circula
nas veias defeituosas e enferrujadas dos seres humanos, o que às
vezes a torna turva. Isso não significa que os princípios estejam
errados, apenas que determinadas pessoas usam esses princípios de
forma inadequada para justificar suas ações. A religião é um
veículo da fé - essa, sim, imprescindível para a humanidade.
Veja - O senhor diz que a ciência e a religião
convergem, mas devem ser tratadas separadamente. Como vê o movimento
do "design inteligente", em que cientistas usam a religião para
explicar fatos da natureza que permanecem um mistério para a
ciência?
Collins - Essa abordagem é um grande
erro. Os cientistas não podem cair na armadilha a que chamo de
"lacuna divina". Lamento que o movimento do design inteligente
tenha caído nessa cilada ao usar o argumento de que a evolução não
explica estruturas tão complicadas como as células ou o olho
humano. É dever de todos os cientistas, inclusive dos que têm fé,
tentar encontrar explicações racionais para tudo o que existe.
Todos os sistemas complexos citados pelo design inteligente - o
mais citado é o "bacterial flagellum", um pequeno motor externo
que permite à bactéria se mover nos líquidos - são um conjunto
de trinta proteínas. Podemos juntar artificialmente essas trinta
proteínas, que nada vai acontecer. Isso porque esses mecanismos se
formaram gradualmente através do recrutamento de outros componentes.
No curso de longos períodos de tempo, as máquinas moleculares se
desenvolveram por meio do processo que Darwin vislumbrou, ou seja, a
evolução.
Veja - Qual a sua leitura da
Bíblia?
Collins - Santo Agostinho, no ano 400, alertou
para o perigo de se achar que a interpretação que cada um de nós
dá à Bíblia é a única correta, mas a advertência foi
logo esquecida. Agostinho já dizia que não há como saber
exatamente o que significam os seis dias da criação. Um exemplo de
que uma interpretação unilateral da Bíblia é equivocada é
que há duas histórias sobre a criação no livro do Gênesis 1 e 2
- e elas são discordantes. Isso deixa claro que esses textos não
foram concebidos como um livro científico, mas para nos ensinar
sobre a natureza divina e nossa relação com Ele. Muitas pessoas que
crêem em Deus foram levadas a acreditar que, se não levarmos ao pé
da letra todas as passagens da Bíblia, perderemos nossa fé e
deixaremos de acreditar que Cristo morreu e ressuscitou. Mas ninguém
pode afirmar que a Terra tem menos de 10.000 anos a não ser que se
rejeitem todas as descobertas fundamentais da geologia, da
cosmologia, da física, da química e da biologia.
Veja
- O senhor acredita na Ressurreição?
Collins -
Sim. Também acredito na Virgem Maria e em milagres.
Veja
- Não é uma contradição que um cientista acredite em dogmas
e milagres?
Collins - A questão dos milagres está
relacionada à forma como se acredita em Deus. Se uma pessoa crê e
reconhece que Ele estabeleceu as leis da natureza e está pelo menos
em parte fora dessa natureza, então é totalmente aceitável que
esse Deus seja capaz de intervir no mundo natural. Isso pode aparecer
como um milagre, que seria uma suspensão temporária ou um adiamento
das leis que Deus criou. Eu não acredito que Deus faça isso com
freqüência - nunca testemunhei algo que possa classificar como um
milagre. Se Deus quis mandar uma mensagem para este mundo na figura
de seu filho, por meio da Ressurreição e da Virgem Maria, e a isso
chamam milagre, não vejo motivo para colocar esses dogmas como um
desafio para a ciência. Quem é cristão acredita nesses dogmas -
ou então não é cristão. Faz parte do jogo.
Veja -
É possível acreditar nas teorias de Darwin e em Deus ao mesmo
tempo?
Collins - Com certeza. Se no começo dos
tempos Deus escolheu usar o mecanismo da evolução para criar a
diversidade de vida que existe no planeta, para produzir criaturas
que à sua imagem tenham livre-arbítrio, alma e capacidade de
discernir entre o bem e o mal, quem somos nós para dizer que ele não
deveria ter criado o mundo dessa forma?
Veja -
Alguns cientistas afirmam que a religião e certas características
ligadas à crença em Deus, como o altruísmo, são ferramentas
inerentes ao ser humano para garantir a evolução e a sobrevivência.
O senhor concorda?
Collins - Esses argumentos podem
parecer plausíveis, mas não há provas de que o altruísmo seja uma
característica do ser humano que permite sua sobrevivência e seu
progresso, como sugerem os evolucionistas. Eles querem justificar
tudo por meio da ciência, e isso acaba sendo usado para difundir o
ateísmo.
Veja - Mas o altruísmo é visto hoje
pela genética do comportamento como uma característica herdada
pelos genes, assim como a inteligência. O senhor, como geneticista,
discorda da genética comportamental?
Collins - Há
muitas teorias interessantes nessa área, mas são insuficientes para
explicar os nobres atos altruístas que admiramos. O recado da
evolução para cada um de nós é propagar o nosso DNA e tudo o que
está contido nele. É a nossa missão no planeta. Mas não é assim,
de forma tão lógica, que entendo o mundo, muito menos o altruísmo
e a religiosidade. Penso em Oskar Schindler, que se sacrificou por um
longo período para salvar judeus, e não pessoas de sua própria fé.
Por que coisas desse tipo acontecem? Se estou caminhando à beira de
um rio, vejo uma pessoa se afogar e decido ajudá-la mesmo pondo em
risco a minha vida, de onde vem esse impulso? Nada na teoria da
evolução pode explicar a noção de certo e errado, a moral, que
parece ser exclusiva da espécie humana.
Veja -
Muitas religiões são contrárias ao uso de técnicas científicas
que poderiam salvar vidas, como a do uso de células-tronco. Como o
senhor se posiciona nessa polêmica?
Collins - Temos
de ser sensíveis e respeitar as diferentes religiões no que diz
respeito aos avanços científicos. Mas interromper as pesquisas
científicas ou impedir que uma pessoa com uma doença terrível
tenha uma vida melhor só porque a religião não aceita determinado
tratamento é antiético. Por outro lado, existem fronteiras que a
ciência não deve transpor, como a clonagem humana, que além de
tudo não serviria para nada a não ser para nos repugnar. Cada caso
tem de ser avaliado isoladamente.
Veja
- Os
geneticistas são muitas vezes acusados de brincar de Deus. Como o
senhor encara essas críticas?
Collins
- Se todos brincássemos de Deus como Deus gostaria, com esperança
e amor, ninguém se abateria muito com comentários do gênero. Mas
somos seres humanos e temos propensão ao egoísmo e aos julgamentos
equivocados. O importante é não reagir de forma exagerada à
perspectiva de que as pessoas possam vir a fazer mau uso das
descobertas da genética, mas sim focar o lado bom dessa
"brincadeira". A maior parte das pesquisas genéticas busca a
cura de doenças como câncer, problemas cardíacos, esquizofrenia.
São objetivos louváveis. Para evitar o uso impróprio da ciência,
o Projeto Genoma Humano apóia um programa que visa a preservar a
ética nas pesquisas genéticas e certificar-se de que todas as
nossas descobertas beneficiarão as pessoas e a sociedade.
Veja
- O
que esperar das pesquisas genéticas no futuro?
Collins
- Nos próximos dois ou três anos vamos descobrir os fatores
genéticos que criam a propensão ao câncer, ao diabetes e às
doenças cardiovasculares. Isso possibilitará que as pessoas saibam
que provavelmente vão desenvolver esses males e tomem medidas
preventivas contra eles, com a ajuda do médico. Mais à frente, as
descobertas das relações entre o genoma e as doenças farão com
que os tratamentos e os remédios sejam personalizados, tornando-os
mais eficientes e com menos efeitos colaterais.
Veja
- O
senhor acredita que Deus ouve suas preces e as atende?
Collins
- Eu nunca ouvi Deus falar. Algumas pessoas ouviram. Não acredito
que rezar seja um caminho para manipular as intenções de Deus.
Rezar é uma forma de entrarmos em contato com Ele. Nesse processo,
aprendemos coisas sobre nós mesmos e sobre nossas motivações.
Fonte:
Revista VEJA,
nr. 1.992, Amarelas, 24/01/2007, páginas 11, 14 e 15.